Cortes sofridos pelos investimentos em ciência e tecnologia nos últimos anos causaram instabilidade no financiamento da produção científica nas universidades federais, limitando a sua capacidade de contribuir com a inovação tecnológica, afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação.
Ele defende a criação de mecanismos que proporcionem estabilidade ao custeio das instituições federais, a exemplo do que é feito em São Paulo, onde recursos orçamentários destinados às universidades paulistas e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) são assegurados por parcelas das receitas estaduais, carimbadas desde os anos 1990.
Para Ribeiro, a ausência de mecanismos semelhantes na área federal prejudica especialmente os pesquisadores que dependem de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação.
“Todo fim de ano você fica na expectativa para saber se haverá dinheiro para sua bolsa ser renovada”, diz Ribeiro. “Essa instabilidade faz parte da constituição do sistema de bolsas na área federal.” Professor de filosofia aposentado da Universidade de São Paulo, ele foi ministro da Educação por seis meses em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016).
Apesar dos esforços do governo para recuperar o orçamento da área desde a volta de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, o presidente da SBPC teme que ela seja prejudicada pelos cortes que deverão ser feitos para equilibrar o orçamento do governo federal no próximo ano. “A indefinição sobre as áreas que serão atingidas é péssima, porque dificulta o planejamento”, afirma Ribeiro.
Nesta entrevista, ele também defende mudanças na gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de recursos para projetos de inovação tecnológica nas universidades e no setor privado. O objetivo seria ampliar a parcela reservada para repasses de verbas não reembolsáveis às universidades, hoje equivalente a metade do dinheiro do fundo.
Os investimentos do país em ciência e tecnologia caíram nos últimos anos. Há expectativa de que esse processo seja revertido?
Renato Janine Ribeiro: Políticas voltadas para o crescimento econômico são essenciais para governos interessados em promover distribuição de renda e justiça social, mas a gestão da economia está em disputa hoje. A financeirização da economia é muito favorecida e há pouco capital disposto a tomar risco, o que vem reduzindo nossa capacidade de financiar a inovação.
O governo tem realizado esforços para recuperar o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, mas muitas áreas importantes contam com menos recursos previstos neste ano do que tiveram no ano passado. Esse foi um dos motivos que levaram à greve dos professores, que paralisou atividades nas universidades federais por dois meses, encerrada no fim de junho.
De que forma isso tem prejudicado os pesquisadores?
Ribeiro: A notícia de que o governo planeja um corte de R$ 26 bilhões no orçamento do próximo ano nos preocupa. A indefinição sobre as áreas que serão atingidas é péssima, porque dificulta o planejamento, e é muito difícil concretizar alguma coisa no meio dessa instabilidade. Basta comparar o tratamento dos que dependem de bolsas na área federal e em São Paulo.
Quando a Fapesp concede uma bolsa, ela deixa separado o dinheiro necessário para custeá-la durante quatro anos e garante ao pesquisador que ele vai receber. As bolsas da Capes e do CNPq dependem de cotas que são arbitradas todo ano. Ninguém tem garantia de que vai receber.
Na área federal, você não sabe se no ano que vem o orçamento vai prever o mesmo número de bolsas do ano em que você entrou no programa. Pode simplesmente não ter. E todo fim de ano você fica na expectativa para saber se haverá dinheiro para sua bolsa ser renovada. Essa instabilidade faz parte da constituição do sistema de bolsas na área federal.
A migração de pesquisadores brasileiros para o exterior é preocupante?
Ribeiro: Não temos dados precisos para avaliar o problema da evasão de cérebros, mas as estimativas que conheço apontam números relativamente baixos. Em geral, as pessoas fazem o possível para permanecer no país, até porque muitos estão no início da carreira acadêmica.
O CNPq lançou um programa de repatriação, oferecendo bolsas, auxílio para aquisição de equipamentos e outros benefícios para cientistas que queiram voltar ao Brasil. A promessa é que R$ 1 bilhão será aplicado nessa iniciativa, para trazer de volta cerca de mil cientistas. Em algumas áreas, o valor certamente será insuficiente para ser atrativo para os pesquisadores.
Jovens cientistas, que ainda não conseguiram o primeiro emprego na universidade, e seus orientadores ficaram indignados. Não entendem por que o país deveria gastar para trazer esse pessoal de volta em vez de investir os recursos aqui, para reter os que trabalham no país.
É possível que os pesquisadores que conseguiram se inserir em universidades no exterior tenham qualidades acima da média, o que justificaria o esforço para trazê-los de volta?
Ribeiro: Alguns certamente são excelentes, mas pode ser que outros não sejam. Muita gente acha que o programa vai premiar quem não teve garra de ficar, que não lutou para melhorar as coisas aqui. A iniciativa gerou um incômodo grande, especialmente para os recém-formados.
A dificuldade que o governo tem encontrado para equilibrar suas contas trouxe de volta ao debate público a ideia de rever os pisos estabelecidos pela Constituição para gastos com saúde e educação, o que inclui as universidades federais. O que o senhor pensa a respeito?
Ribeiro: O sistema de financiamento das universidades federais é um pouco da mão para a boca. Você recebe o dinheiro e manda os recursos para o que for necessário na hora. No sistema vigente no Estado de São Paulo, que tem um percentual das receitas garantido para as universidades estaduais e outro para a Fapesp, você tem na prática um fundo que evita isso.
Há sugestões da comunidade acadêmica para que se faça o mesmo com as universidades federais, reservando para elas uma parte dos 18% que devem ser gastos obrigatoriamente com a educação pública. Alguns sugerem até percentuais específicos para cada uma das 70 instituições federais. Seria uma maneira de garantir estabilidade ao financiamento do sistema.
O senhor acha essas propostas realistas, considerando a situação frágil das contas do governo?
Ribeiro: Acho difícil implantar, porque há uma disputa também pelo dinheiro da educação, entre as universidades e a educação básica. Faz pelo menos 30 anos, todos os ministros da Educação dizem que a prioridade deve ser a educação básica, que é onde o Brasil produz a miséria, a falta de futuro, a liquidação da juventude dos mais pobres, por aplicar mal o dinheiro.
Os professores universitários estão melhor do que os da educação básica, não se discute. Assim como os alunos universitários, em comparação com as crianças que estão sendo alfabetizadas. Mas é difícil. Temos classes com 40 alunos ou mais na educação básica, o que é inaceitável. Teríamos que dobrar o número de classes e professores para resolver o problema. Ou seja, não se trata de cortar gastos, mas de aumentar os recursos.
O FNDCT foi poupado de cortes no ano passado. A gestão dos recursos melhorou com o novo governo?
Ribeiro: O governo Jair Bolsonaro [2019-2022] contingenciou recursos e submeteu o fundo a estresse ainda maior ao usar parte do dinheiro, que deveria financiar inovação na academia e nas empresas, para cobrir buracos no orçamento do ministério. O descontingenciamento do orçamento do fundo foi um avanço, que deve ser reconhecido, mas ainda há problemas na sua gestão.
Por lei, ao menos metade do dinheiro do fundo deve ser reservada para recursos não reembolsáveis, destinados a investimentos nas instituições de pesquisa, e a outra metade financia empréstimos às empresas. Na transição para o novo governo, propusemos um aumento da parte não reembolsável, para 75% do total. Neste ano, tentaremos chegar a 60%.
Outro problema é que as reuniões do Conselho Diretor do FNDCT e dos comitês dos fundos setoriais não têm sido realizadas com a frequência e a abertura que gostaríamos de ver. Há uma tendência de reunir os colegiados apenas para homologar o que o governo já planejou, o que está gerando incômodo na comunidade acadêmica. Queremos fazer propostas e críticas.
Ainda existe resistência nas universidades a uma interação maior com o setor privado?
Ribeiro: Muita gente ainda tem restrições, porque sente que essa aproximação vai colocar a pesquisa acadêmica a serviço do capital e do mercado. Mas há uma disponibilidade maior para parcerias hoje em dia, e acho até que talvez o problema principal seja inverso, não tanto o boicote da academia, mas o desinteresse do setor privado pela pesquisa nas universidades.
A nova política industrial proposta pelo governo defende a retomada de iniciativas malsucedidas no passado, como a indústria naval e a tentativa de desenvolver a produção de chips e semicondutores no país. O que a academia pensa das escolhas que têm sido feitas?
Ribeiro: Conceitualmente, acho correta a busca do que o governo tem chamado de neoindustrialização. Quer dizer, nós queremos um novo tipo de indústria, que vai precisar de menos chaminés e mais ciência do que as indústrias criadas no passado. E precisamos modernizar não só a produção de bens, mas também de serviços, essenciais na nova economia digital.
É importante que as operações com recursos reembolsáveis do FNDCT, que financiam empréstimos para as empresas a juros mais camaradas, estejam associadas à incorporação de mestres e doutores no processo produtivo. Somente assim estaremos de fato contribuindo para promover o desenvolvimento científico e tecnológico do país ao aplicar as verbas do fundo.
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Inovação Educacional
onto Inovação Educacional August 10, 2:36 PM
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